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Um Limite Entre Nós (Fences – 2016)

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Existem pessoas que tem o poder de fazer projetos grandiosos acontecerem simplesmente por que o querem. No mundo do cinema isso pode levar a resultados opostos. Pode dar muito errado, um atestado ao tamanho exagerado do ego de pessoas com muito dinheiro e tempo a sua disposição, ou pode dar muito certo, como é o caso de Um Limite Entre Nós.

A peça de teatro que inspirou o filme apareceu na Broadway em 1987, ganhou os prêmios Tony Awards de melhor peça, melhor ator para James Earl Jones e melhor atriz coadjuvante para Mary Alice. Foi reapresentada em 2010 com Denzel Washington e Viola Davis nos papéis principais, e repetiu a façanha recebendo o Tony Awards de melhor revival para uma peça, melhor ator e melhor atriz, e agora chega aos cinemas com o mesmo casal icônico de Hollywood mais elenco de apoio e indicado a 4 Oscars, inclusive o de melhor filme.

O longa se passa na década de 1950, e acompanha uma família negra de classe baixa, e sua realidade. O patriarca, Troy Maxson (Denzel Washington) trabalha como coletor de lixo e luta para que a empresa permita que ele se torne motorista do caminhão. Teve seus sonhos de juventude frustrados quando não conseguiu jogar baseball profissionalmente por causa da cor de sua pele, e se mantém apegado a esse rancor a ponto de impedir que o filho siga uma carreira no esporte. Ele garante que o jovem não consiga ser recrutado pelas universidades interessadas, o que faz com que a animosidade e tensão cresça dentro do lar e coloque os familiares uns contra os outros.

Um Limite Entre Nós apresenta, na figura de Troy, um personagem cheio de vida, interessante, apegado a valores e ao mesmo tempo humano o bastante para ir contra esses mesmos valores, mesmo que se mostre refém de traumas antigos, lembranças dolorosas e referências negativas enquanto criança. Um homem amargurado e falho, ao mesmo tempo que consciente da realidade em que vive e das responsabilidades.

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Pressão sobre o filho. Relação paterna complicada.

Em contrapartida temos Rose (Viola Davis), a figura da esposa e mãe, dona de casa esforçada e dedicada, mantenedora da ordem e da paz. Nela encontramos, à princípio, uma mulher solidária às dores do marido, porém destemida para vencer as dificuldades financeiras e fazer as vezes de juíza nas relações entre o marido e o filho do casal Cory (Jovan Adepo), o cunhado Gabe (Mykelti Williamson), o enteado Lyons (Russell Hornsby), e o melhor amigo e vizinho Jim (Stephen Henderson). Rose é peça central na manutenção da sanidade de Troy, que demonstra em vários momentos amor por ela, e a necessidade de coloca-la no comando da casa.

Com diálogo constante e majoritariamente protagonizado por Troy, o texto incrivelmente teatral traduz uma realidade comum, que poderia ser reconhecida facilmente, em quantidades maiores ou menores, por muitas pessoas. A figura do homem machucado pela vida, que luta contra si mesmo para ser aquilo que ele acredita que sua família precisa que ele seja, que coloca de lado, na maioria do tempo, as vontades e desejos, e que, por muitas vezes, devolve essa frustração em forma de violência e autoritarismo para aqueles que, no fim do dia, serão os únicos restantes a seu lado.

Rose ganha vida a partir do segundo ato, quando precisa protagonizar muitas cenas e dividir com o espectador um pouco mais sobre si mesma, e as expectativas para a vida. Em embates muitas vezes simplórios e à primeira vista insignificantes, somos apresentados à verdade daquele casamento, à verdade da força e da imponência da presença de Rose, e a real importância dela.

O veterano Denzel Washington, que não apenas estrela o longa como também produz e dirige, apresenta desde os primeiros segundos a capacidade de comandar a tela, definir o tom da história, e desenvolver o profundo estudo de personagem que se dará ao longo do filme. Com carisma e talento incontestáveis, já recompensados com 2 Oscar, em 2002 por Dia de Treinamento e em 1990 por Tempo de Glória, são colocados a toda prova, quando transforma cenas coletivas em verdadeiros monólogos. Encanta o espectador, os colegas com quem divide a cena e, arrisco dizer, até quem estava por detrás das câmeras. Não há olhos que não estejam virados para ele, não há quem não esteja se concentrando no ato de ouvi-lo para absorver o máximo possível do que tão habilmente recria do texto magistral lindamente decorado e reproduzido de forma orgânica.

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Troy e Rose. Inversão de valores familiares.

Viola Davis, muitas citada ao longo dos últimos anos como uma verdadeira força da natureza, se opõe ao colega de forma precisa. Mais branda ou mais enérgica de acordo com a necessidade da cena, ela atropela com a presença quando chega a hora de brilhar. A personagem é comovente e ao mesmo tempo inspiradora. Em momento algum sente-se menos do que respeito por ela, mesmo que por vezes reflita valores ultrapassados que, ainda bem, ficaram nos século XXI; Rose é destemida e se recusa a ser uma vítima, e, no final das contas, são a maturidade e a sabedoria dela que mantém a família de pé.

Com o elenco de apoio, não há desapontamentos nesse filme. Cada personagem, mesmo que com menor tempo de tela, não deixa de refletir a luz que emana do casal de protagonistas, entregam personalidades distintas e verdadeiras, e complementam com igual competência o desenrolar da trama. O destaque maior fica com Mykelti Williamson, que emociona pela delicadeza com que apresenta um personagem único, cheio de nuances e feito com veracidade.

Há uma certa dificuldade com relação ao dinamismo, dado que um roteiro adaptado dos palcos para as telas tende a sofrer com cenas longas e lentas. O ritmo pode se tornar cansativo, ainda que a direção de Washington tenha sido atenta para o fator atenuante, e tenha usado de ângulos de câmera e cortes para rebater a quantidade pequena de localidades e atores em cena. Para quem consegue mergulhar no texto e se apegar aos personagens, o ritmo deixa de ser um fator, mas de forma geral é possível que o grande público sinta certo desconforto com a longa duração das cenas e diálogos, ainda que as atuações mereçam todo o tempo necessário para se aprofundar em falas, maneirismos e até mesmo reações em cena.

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Denzel e Viola dão o tom das performances do filme.

O texto, como comprovado pelos anos de sucesso nos palcos, não poderia de forma alguma desapontar. É quando se estuda a história de pessoas comuns, que viveram vidas ordinárias e sofreram com o peso de sua humanidade, que conseguimos reconhecer a nós mesmos. É em como lidamos com essas mesmas coisas que nos tornamos humanos. Mais do que isso, a história nos ajuda a também reconhecer a presença de pessoas como Troy em nossas vidas, e principalmente a entender, assim como o filho do casal entende eventualmente, que somos todos fruto de nossas experiências. É como escolhemos lidar com as dores, os traumas e as lembranças que determinamos como serão nossas vidas. Não há valor em sentir rancor, e, ainda que tenha se tornado um grande clichê repetir, há muita bravura no perdão.

De fato o conjunto da obra merece todos os elogios e prêmios que recebeu, incluindo o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Viola Davis. Se trata de um belíssimo filme, um texto poético e emocionante, um elenco de primeira grandeza e uma mensagem de importância significativa e atemporal. Está garantida uma excelente experiência.

AnaLuizaMedeiros.com

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