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A cumplicidade transgressora que revolucionou Hollywood

O casal no carro

O clássico “Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas” (Bonnie and Clyde, 1967), de Arthur Penn, é baseado na história verídica do casal Bonnie Parker (Faye Dunaway) e Clyde Barrow (Warren Beatty), que ganhou notoriedade nos Estados Unidos na década de 1930, em meio a um contexto político e econômico conturbado. Procurados pela justiça, foram considerados inimigos públicos por assaltos e assassinatos. Juntamente com o casal, a gangue abarcou mais três personagens: o irmão de Clyde, Buck Barrow (Gene Hackman), sua mulher Blanche Barrow (Estelle Parsons) e o até então desconhecido C.W. Moss (Michael J. Pollard).

A chamada The Barrow Gang fazia tremer o comércio: sinônimo de brutalidade impiedosa, também era vista como um sinal de revolta contra a miséria em tempos de crise. Paradoxalmente, exerceram um curioso fascínio sobre parte da população, devido a constantes aparições nos jornais. Interessante observar como o bombardeio noticioso expõe o sentimento de vaidade em cada um dos personagens no desenrolar da trama.

Considerado um divisor de águas em Hollywood, o filme atendeu aos anseios por inovação e quebrou paradigmas que dominavam a indústria norte-americana à época. A montagem foi feita pela pioneira Dede Allen, que usou técnicas experimentais como o jump cut, um tipo de corte rápido entre planos parecidos, como se a imagem desse um salto sobre ela mesma. Esse efeito provoca estranhamento aos olhos acostumados com padrões comerciais de realização cinematográfica, e foi criado por Jean-Luc Godard no filme Acossado (À bout de souffle, 1959). O cineasta foi um dos fundadores da Nouvelle Vague, movimento de renovação do cinema francês nos anos 1950-60. Esse recurso de edição mostra como a estética construída por Penn e Allen em Bonnie e Clyde propõe um novo visual cinematográfico a partir da ruptura com o convencional, ligado à identidade de uma geração inquieta, questionadora e desejosa de novas experiências.

O clima rebelde e libertário, característicos do final dos anos 1960, é apresentado na ousadia temática do roteiro. De certo modo, a glorificação de uma dupla de assassinos e ladrões, a pulsante intransigência e impetuosidade juvenil – conduta até então bastante engessada na sociedade patriarcal – gerou controvérsias. A vivacidade dos marginais agradou o público antissistema e, ao mesmo tempo, instigou a fatia mais conservadora. Ao entrar em contato com o filme, a plateia é colocada em constante questionamento sobre os delitos cometidos pelo casal de bandidos, que assumem um protagonismo humanizado: os simpáticos delinquentes.

O casal rende pessoas em um banco

Bonnie e Clyde exibe a justiça crua: as situações ocorrem à sombra da lei e são indiferentes aos apelos dos direitos humanos e do direito de defesa. Os criminosos, vingadores amorais, seguem um código próprio de sobrevivência e não carregam culpas. O “justiçamento” da polícia em relação aos infratores, por sua vez, ocorre ao arrepio da lei – o que se opõe ao princípio da equidade. A massiva identificação dos espectadores com os protagonistas deriva de uma descrença generalizada sobre o papel da justiça formal, bem como a expansão vertiginosa e banalizada da violência. Essa ideologia sempre tem melhores cores no cinema do que estampada no rigor da vida real.

Em termos técnicos, destaco novamente o precioso trabalho de edição e montagem das sequências de ação, com cortes rápidos, pontuais e coerentes. A trilha sonora descontraída é responsável por desanuviar grande parte da violência gráfica explícita na obra. As atuações fazem jus à repercussão do filme. O excelente trabalho da histérica Blanche rendeu estatueta de melhor atriz coadjuvante a Estelle Parsons. Por trás da aparência de bandido vigoroso e inalcançável de Clyde, o famoso estereótipo de durão dos westerns, havia um homem inseguro e frágil, que precisava de reconhecimento e sucesso para se afirmar – em especial para Bonnie, uma mulher que desejava ardorosamente uma vida de riscos e emoções. Ao fim, a cumplicidade nos crimes acaba servindo como fonte de prazer para ambos.

A amarga e ensurdecedora “rajada de balas”, acompanhada da troca de olhares entre os protagonistas, indica o trágico desfecho do lendário casal. O roteiro não é totalmente fiel aos fatos reais, mas tenta seguir a cronologia e a história verdadeira. Ainda assim, toda a riqueza da composição acerta no objetivo de divertir e romantizar com estilo, rechaçando o estigma clássico de Hollywood e apresentando uma obra decupada nos moldes do cinema europeu. Sexy, violento e amoral, Bonnie Clyde tornou-se referência para cineastas e cinéfilos.

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