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A Memória que me Contam

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Acho que nunca vi um caso de timing tão perfeito quanto o desse A Memória que me Contam. Na semana em que começaram as manifestações e os protestos em São Paulo o filme estava chegando aos cinemas de Brasília. Não sei como foi o lançamento nacional porque o IMDB diz apenas que a estreia foi no festival internacional de filmes de São Paulo. Mas quando o filme mostra imagens de protestos antigos em ruas que passam pelo mesmo processo atualmente parece uma propaganda planejada para o momento.

Ana vai para a UTI às portas da morte. Seu amigos e parentes mais próximos passam a viver uma rotina no hospital onde esperam por mais informações e por seu eventual falecimento. Lembra bastante as Invasões Bárbaras. Principalmente levando em conta que o grupo é tomado constantemente por discussões políticas e intelectuais.
O negócio é que o grupo de amigos de Ana foi todo torturado durante a ditadura militar. Um deles é ministro da justiça e está passando por um tenso processo de abertura de documentos militares da época. A discussão da moral de cada integrante passa a ser refletida na negociação política.
Ana é uma personagem que faz referência à figura pública Vera Sílvia Magalhães. Ela, assim como a personagem, foi torturada pelos militares e fez parte da revolta contra a ditadura. Também tem um grupo de amigos que contam com uma diretora de cinema que acabou por fazer um filme sobre a amiga que partiu.
A personagem Irene é obviamente a versão fictícia da diretora Lúcia Murat, assim como o grupo de amigos é uma versão do grupo de amigos de Murat e Sílvia Magalhães.
Para tratar da amiga que partiu, Murat toma decisões inteligentes. Ao invés de construir a imagem dela por quem ela era, prefere mostrar a forma como todos lembram dela. Ana, tal qual ela estava quando morreu, nunca aparece. É a versão jovem da lembrança de todos que dialoga com eles enquanto tentam lidar com a perda.
A mulher parece um mistério a ser revelado pela geração mais nova. Os filhos dos amigos a admiram muito. Juntos, eles tentam entender quem ela era.

Conflito de gerações. Revoltas de diferentes idades.
Conflito de gerações. Revoltas de diferentes idades.

Nesse conflito de gerações surge uma proposta interessante. O filho de Irene é homossexual e vive sua própria luta por direitos. A mãe não entende e acha que a única e verdadeira revolução foi a deles. Uma forma de Murat reconhecer que lutas por direito sempre serão necessárias.
O grupo de amigos ficou amargurado depois dos anos. A vitória nunca chegou e ainda precisam lidar com todo tipo de culpa. Culpa pelas mortes que eles também provocaram. Culpa pela percepção de que a causa não era completamente correta. Acima de tudo, culpa por terem sobrevivido.
É um filme interessante para se ver atualmente. Não conseguia parar de pensar nas coisas que estão acontecendo agora nas ruas. As mesmas ruas nas quais Ana e companhia lutavam contra as forças armadas.
É interessante ver as reflexões de pessoas que já fizeram seus protestos. Repensando os erros e as falhas. Serão essas as reflexões das pessoas nas ruas daqui a alguns anos? Será que toda essa revolta será apenas lembranças amarguradas no futuro?
Lúcia Murat é uma grande diretora. Tem domínio da linguagem. Coloca dois dos amigos em ângulos opostos em enquadramentos diferentes. Faz com que seja visível que estão com algum tipo de rivalidade. Ela faz essa montagem ligando ideias de enquadramentos para dar continuidade ao raciocínio do filme.
A direção de arte mistura o estilo da época da ditadura com os atuais. Parece que o tempo flui entre os dois períodos. A fotografia também brinca muito com isso. Os ambientes mais modernos são mais frios, os mais retrógrados vibram com cores mais quentes.
Franco Nero engole o resto do elenco.
Franco Nero engole o resto do elenco.

Os atores vão do péssimo para o excelente. Alguma falas parecem forçadas. Mas são poucas. O Franco Nero (ele mesmo, o Django clássico) engole o resto do elenco sempre que aparece. A Simone Spoladore é uma potência de emoções. Aqui seus olhos expõem a mais profunda tristeza, ali sua alegria é contagiosa. Os momentos ruins são poucos, mas incomodam.
Já seria um ótimo filme sem a contextualização política atual do Brasil. As manifestações através do país apenas o deixam mais forte e contemporâneo.
 
FANTASTIC…

1 comentário em “A Memória que me Contam

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