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Doutor Sono (Doctor Sleep – 2019)

“Me diz quem vai dirigir essa merda”, foi a reação do diretor de cinema Pedro Buson quando soube que O Iluminado teria continuação. Mesmo depois de saber que seria um diretor conceituado como o Mike Flanagan, ele ficou irritado: “Mas não é o Stanley Kubrick!”. Ele tem motivo para a preocupação. Qualquer pessoa que resolva estudar cinema descobrirá rapidamente que o realizador lendário é um dos mais importantes da história.

E retomar a história de Danny Torrance (Ewan McGregor) 40 anos depois do clássico é perigosíssimo. Agora adulto, ele usa os poderes de clarividência e de mediunidade para auxiliar pessoas moribundas em um hospital em que trabalha no turno da noite. Até encontrar Abra (Kyliegh Curran), uma garota mais poderosa do que tudo que ele já conheceu. Agora ele precisa protegê-la de um grupo de semi-vampiros liderados por Rose a Cartola (Rebecca Ferguson) que querem absorver a essência dela.

Este Doutor Sono tem um risco duplo para Flanagan. Além de fuçar com um clássico de um dos grandes mestres da arte, ainda é continuação de um filme que ficou infame pelo ódio do autor do livro que serviu de inspiração, Stephen King. O que deixou para Flanagan três opções complexas: fazer uma continuação que se desconecta do livro; uma adaptação do livro que se desconecta do filme anterior; ou fazer algo que seja tanto continuação e adaptação fiel. E o diretor, roteirista e editor escolheu justamente a terceira, a mais difícil.

Filme é continuação do conflitante O Iluminado, e adaptação fiel da continuação em forma de livro.

Felizmente, Flanagan é apaixonado pelos dois. Conheceu o filme de Kubrick antes de conhecer King como autor, mas eventualmente passou a admirar a obra do escritor. Por isso, consegue equilibrar os dois objetivos na maior parte do filme. Assim como no livro Doutor Sono, faz com que a história seja uma jornada de redenção para os Torrance. Ao mesmo tempo, é uma homenagem à tudo o que faz do filme clássico algo tão influente no cinema.

Desde o começo, ele demonstra como os eventos no hotel Overlook traumatizaram Danny quando garoto. Perseguido pelos espíritos do lugar e com a lembrança do pai violento e alcoólatra, ele segue o caminho compreensível, de excessos. É um tema recorrente em filmes do diretor, e ele apresenta bem o que é a luta de Danny para largar o vício em bebida e para encontrar equilíbrio e estabilidade. Tudo, é claro, remete ao passado sombrio dos Torrance.

Ainda assim, o primeiro enquadramento e o estilo musical do filme original dão o tom de que se trata de algo no mesmo universo de O Iluminado. Flanagan faz questão de repetir enquadramentos de Kubrick e de usar planos simétricos. Até que Danny se reforma e toda a linguagem do filme passa a ser dele. É sutil, mas ele assume a produção como dele sem deixar de reconhecer o que veio antes.

Mesmo que extremamente poderosa, Abra precisa ser salva por Danny.

Há uma predominância da cor verde, que Flanagan gosta de usar para representar protagonistas femininas nos filmes dele. Da mesma forma que Doutor Sono é, predominantemente, um suspense de gato e rato. Não há monstros ou fantasmas atrás de ninguém. É apenas Danny e Abra com os poderes paranormais contra um grupo de “pessoas” com outros poderes paranormais.

E, nesse sentido, Flanagan deixa produções de super-heróis exuberantes como Doutor Estranho no chinelo. Há uma cena em que Rose e Abra têm uma disputa por controle de mentes que brinca muito bem com as formas como humanos acumulam memórias e têm representações mentais de si. É divertido ver esses confrontos, mesmo que eles não sejam grandes cenas de ação e perseguição.

Outra coisa que garante a diversão é o domínio do ritmo. Flanagan conduz as cenas por meio de uma linha de raciocínio que permite ao espectador prever os perigos que se aproximam, mas não o que acontecerá. Então, quando se vê Rose ter uma experiência extracorpórea através dos Estados Unidos, já é possível prever que ela vai procurar Abra. É algo que Hitchcock fazia muito bem: com que o espectador soubesse do risco, mas não o que acontecerá quando ele alcançar um dos personagens.

Rebecca Ferguson é dona do filme como Rose.

Isso já cria identificação com os protagonistas, porque todo mundo entende o que é temer pela segurança. Outra coisa que serve bem a esse propósito é a representação do grupo de vilões. Eles são/foram humanos, mas predam crianças por fome. E Flanagan faz questão de mostrar uma morte lenta e dolorosa de um menino, para dar a entender o que pode acontecer com Abra e Danny. Também ajuda muito ter uma atriz fenomenal como Ferguson como antagonista.

Ela faz com que Rose se expresse por movimentos mínimos. Quando descobre uma brincadeira de um parceiro, dá um leve meio sorriso. Quando caça Abra, levanta levemente os braços para indicar que a personagem sente os inimigos com os poderes dela. Ferguson é tão boa que ofusca um elenco extraordinário. Além de McGregor, apaga gente como Bruce Greenwood, Cliff Curtis e Jacob Tremblay.

Com tanta personalidade e rumo próprio, o filme derrapa justamente no clímax, quando precisa fechar as pontas de Danny com o passado dele. Há até uma fala de Rose que nos lembra que o personagem nunca chegou a encontrar os perigos do filme até o fim. De repente, o filme volta a repetir enquadramentos e trilhas de O Iluminado, perde o ritmo e coloca algumas soluções aceleradas que nunca parecem se encaixar no que foi mostrado até então. É mais um clímax anticlimático.

Referência demais fazem com que filme se perca no terceiro ato.

No entanto, um final apagado não compromete o que foram duas ótimas horas que prendem e fazem o espectador torcer pelos personagens e vibrar de tensão com os vilões. Doutor Sono não é apenas um trabalho arriscado de Flanagan, mas também o primeiro filme de grande orçamento voltado para grandes audiências. E, mais uma vez, o artista passou pelo teste como realizador.

 

P.S.: Como há referências em peso ao filme de 1980, é recomendado reassisti-lo antes da sessão.

2 comentários em “Doutor Sono (Doctor Sleep – 2019)

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