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Um Cadáver para Sobreviver (Swiss Army Man – 2016)

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Existe um filão de filmes com propostas absurdas que raramente são feitos exatamente por serem contra a verossimilhança que normalmente se vê no cinema. Obras como John Morre no Final, Almas à Venda e quase tudo o que o Charlie Kaufman escreveu. Vai além da fantasia comum quando algo incompreensível acontece na tela e não existe explicação.

Nada mais estranho ou absurdo que um naufrago em uma ilha que encontra um corpo de outro homem cheio de habilidades que facilitam a sobrevivência. É o que acontece com Hank (Paul Dano) quando decide se matar depois de dias ilhado. Ainda com a corda no pescoço, um cadáver que ele virá a chamar de Manny (Daniel Radcliffe) aparece na praia. Após o estranhamento inicial, o corpo consegue, com flatulências, levar Hank de volta para a costa. Na busca por outras pessoas, Manny vai se revelar cheio de surpresas.

Não é preciso guardar segredo quanto a um detalhe importante da produção. Manny não é só um defunto cujo corpo consegue fazer inúmeras coisas mecanicamente, mas também dialoga com Hank. Não tem como saber se o homem, na solidão, começou a enlouquecer, ou se de fato ele presencia um momento único da história. E isso é parte da graça de Um Cadáver para Sobreviver. Não é preciso explicar, porque a proposta é fazer, por meio da interação entre os dois, reflexões muito profundas sobre a vida, a morte e finitude.

O roteiro da dupla que se apresenta como os Daniels, também diretores do longa, não tenta esconder a bizarrice. Logo na primeira cena Manny quebra o padrão de uma cena de suicídio comumente dramática com peidos excessivos. Literalmente, as flatulências interrompem a música fúnebre de Hank até chegar o momento (que já se tornou icônico) em que o vivo viaja em cima do morto como se ele fosse um jet sky.

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Cena já icônica. Homoerotismo óbvio em meio à bizarrice.

Apesar de tratar de temas complexos, a sacada da dupla é não tentar fazer com que as discussões entre os dois sejam sérias demais. Eles sabem que o filme que realizam é um dos mais adequados ao termo nonsense. À princípio, fazer com que um dos personagens peide demais parece uma comédia gratuita e boba, mas o contexto é parte da abordagem dos Daniels para as reflexões.

Peidar é incômodo socialmente, mas é parte da natureza dos seres vivos. Quando Manny questiona se ele é uma companhia ruim, Hank percebe o absurdo de não se gostar de alguém porque a pessoa faz algo que todo mundo faz. Daí os dois pensam sobre razões para que todos se afastem uns aos outros, sobre as razões para querer viver e, mais especificamente, sobre solidão.

Aos poucos, o roteiro mergulha mais e mais fundo no absurdo. Manny vira uma pistola, uma fonte de água, um isqueiro, um bússola e por aí vai. Quanto mais os dois abraçam os valores únicos dele e mais ele compreende sobre os valores de estar vivo, mais ele realmente adquire vida. Mas como só conhece Hank, não tem muita noção sobre expectativas e solidão. As tentativas do vivo de explicar não funcionam perfeitamente e, de forma singela, alegorias são feitas para tratar do tema. Como quando ele simula uma volta de ônibus para que o morto compreenda o que é ter medo de iniciar diálogo com o sexo oposto.

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Daniel Radcliffe aprende a viver.

Também não é escondido no filme que a relação dos personagens é homoerótica. A dependência de Hank é física para o amigo defunto. E diversas vezes ele monta sobre ele, se traveste para ele e o toca com carinho. Ainda mais quando ele se passa por mulher para que Manny compreenda como é a interação com uma.

Mas o mais interessante é a montagem nesses momentos. Os Daniels sobrepõem descrições de Hank para Manny com interpretações dos dois que claramente não acontecem no mesmo instante. É como se o filme tivesse o ritmo do raciocínio do vivo. Ele imagina algo para o amigo e o cérebro dele liga duas situações diferentes. Isso se torna ainda mais evidente quando pequenos sons que ele faz viram parte da trilha musical. Como se o espectador conseguisse ouvir música da forma como ele a imagina.

Paul Dano e Daniel Radcliffe são dois dos melhores atores da geração deles. O primeiro, infelizmente, não é tão reconhecido como deveria. Aqui ele usa e abusa dos trejeitos mais delicados para dar vida a uma segunda personalidade feminina sem estereotipar mulheres. Em paralelo, o segundo se entrega ao papel do defunto com personalidade com uma fisicalidade admirável. É impressionante ver como Radcliffe tem o cuidado de sempre manter um dos olhos mais fechados que o outro. E isso é apenas parte da interpretação minimalista dele para Manny.

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Paul Dano transita naturalmente entre tipos e trejeitos.

Certamente esse não é um filme para todos. O nível de bizarrice vai afastar quem não puder gostar nos primeiros minutos. Desde o uso de peidos e ereção para filosofar sobre a vida até a loucura de um homem solitário que conversa com um cadáver, a produção transpira esquisitice. O que é ótimo. Faz rir, refletir e até chorar.

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