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Nós (Us – 2019)

É difícil de acreditar que um dos grandes nomes do horror atuais seja o de um comediante elogiado como o Jordan Peele. Depois de inúmeros quadros de humor com várias críticas sociais, na maioria sobre o racismo, ele estreou com o premiado Corra!. E ainda fez mais, ao fazer um dos poucos filmes do gênero que é reconhecido nos meios mais “acadêmicos” do cinema.

Assim, Peele segue adiante com a carreira ao contar a viagem de férias da família Wilson, encabeçada por Addy (Lupita Nyong’o), a uma praia onde ela sofreu um trauma quando criança. Lá, ela se perdeu em uma casa de espelhos e foi atormentada com outra versão dela mesma. Agora, adulta, reencontra essa outra pessoa, dessa vez acompanha de outros do marido Gabe (Winston Duke) e dos filhos Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex).

Para isso, o diretor e roteirista retoma o estilo do esquisito. Não tem nada demais na praia e nas férias, mas Addy se assusta com a repetição dos números 11, alusão ao versículo 11 do capítulo 11 do livro de Jeremias na Bíblia. Nele, Deus anuncia uma calamidade para os homens sem se importar com os pedidos de ajuda.

A outra Addy. Perturbação a todo custo.

Como a própria personagem diz em certo ponto do filme. São pequenas coincidências que a incomodam. Um estranho na praia com mãos ensanguentadas. Um desaparecimento rápido do filho justamente diante da casa de espelhos onde ela se perdeu quando criança. Ruídos na casa durante o dia. Até que os outros aparecem.

Peele admite que se inspirou no episódio “Mirror Image” da série de TV Além da Imaginação, de 1960 (cujo remake ele mesmo está capitaneando). Fã do seriado, ele gosta de abordar o estranho que o show criava. Aqui, além de forçar a família protagonista a encontrar outros iguais a eles, ele reflete parte das personalidades em cada um.

Assim, a irmã adolescente que gosta de maltratar o caçula por ser mais forte e que gosta de correr por esporte, é forçada a fugir a pé de uma versão sádica e ainda mais atlética de si mesma. Por ser introvertido, o mais novo aprendeu mágicas. Assim precisa confrontar o animalesco e incapaz de se expressar duplo. Da mesma forma, o pai que tenta ser uma figura masculina de chefe de família se vê quase submisso ao outro gutural e primitivo.

Lupita, como sempre, maravilhosa.

Cada um deles evoca o horror do original. Mas é em Addy, e na cópia dela, que Peele realmente constrói o filme. A autointitulada Red (vermelho, em tradução literal), se ressente da vida completa da versão terrena dela, enquanto ela mesma era forçada a viver os reflexos. Há muita dor e sofrimento por trás da violência que a clone apresenta.

E Lupita demonstra isso em cada olhar. Não à toa, o espetáculo é dela. Como as cópias não estão habituadas a falar, a atriz faz com que as poucas falas da personagem espelhada sejam ditas com falas quase guturais, como se ela aprendesse a falar pela primeira vez. Nyong’o, é preciso dizer, rouba a atenção em cada cena, com uma interpretação complexa em níveis tanto corporal quanto facial.

O mesmo pode ser dito da coadjuvante Elisabeth Moss, que representa a vizinha quase caricatural Kitty. Existe algo de feio por trás da vida voltada para aparência da personagem. A realidade dos filmes de Peele é perturbadora, como se por trás do comum, tudo fosse um pesadelo esperando para nos atormentar.

Há algo de errado em nós… E em nossos reflexos.

Para isso, ele cria imagens com coisas levemente fora de lugar, ou perfeitamente centralizadas demais para ser real. Em certo ponto, durante uma conversa com uma amiga, um frisbee as assusta, e ao espectador, ao entrar de supetão em cena. Quando ela percebe, o disco caiu perfeitamente sobre um círculo da toalha da praia. Nada fora do real, mas estranho.

Além disso, a trilha sonora usa de sons estridentes, como se um disco ou uma música estivessem com defeitos. Em especial, no terceiro ato, o compositor Michael Abels distorce os tons e ritmos da música I Got 5 on It, do grupo Luniz, com instrumentos de corda para uma performance contemporânea de dança. É uma composição musical para ser lembrada.

No entanto, para garantir essa ambientação de perturbação, Peele recorre a uma reviravolta final que gera dois problemas. Primeiro, não é tão chocante ou incômoda quanto ele quer. E o principal, que deixa muitas dúvidas sem resposta, o que faz com que o espectador saia do cinema com um gosto amargo de que falta algo ao filme. Mesmo que essa falta seja proposital, atrapalha a experiência.

Se você não gosta de histórias que não precisam ser explicadas totalmente, esteja pronto para sair com raiva enquanto rolam os créditos de Nós. Se você gosta desse gosto amargo proposital, prepare-se para se deliciar com os sabores que Peele quer trazer.

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