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História, feminismo e ousadia em Alfred Hitchcock (Interlúdio – 1946)

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Estrelado por Ingrid Bergman no papel da peculiar Alicia Huberman, Interlúdio (Notorious, 1946) representa um divisor de águas para a carreira de Alfred Hitchcock. É quando o diretor passa a fazer uso de planos e enredos que o marcam em filmes como Psicose (Psycho, 1960) e Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), e que lhe conferiram o título de “mestre do suspense”.

De temática complexa e polêmica – a espionagem -, o longa é ambientado no Rio de Janeiro pós Segunda Guerra Mundial. A protagonista Alicia Huberman é uma alemã cujo pai foi preso por ser espião nazista. Bela e sofisticada, a moça é convidada por um misterioso homem, mais tarde identificado como Sr. Devlin (Cary Grant), para espionar os amigos do pai dela no Brasil, em especial Alex Sebastian (Claude Rains). A espiã se aproveita do interesse de Sebastian para seduzi-lo, embora esteja apaixonada por Devlin.

A química do casal de atores Cary Grant e Ingrid Bergman é um dos pontos altos do filme. Ousado e pioneiro, Hitchcock burlou o Código Hays, imposto entre 1930 e 1956, que ditava as normas de conteúdo cinematográfico. O documento recomendava que os editores evitassem imagens de beijos prolongados. Em uma das cenas mais memoráveis de Interlúdio, o diretor conseguiu fazer com que os atores principais se beijassem por mais de dois minutos, tempo significativo para uma sequência em audiovisual, com sequências de beijos curtos.

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Bergman com Hitchcock.

Do ponto de vista histórico, o longa traz uma fórmula que vem sendo muito usada no cinema norte-americano desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Na indústria cinematográfica hollywoodiana, uma história possui apenas dois lados: o dos “mocinhos” e o dos “bandidos”. Repare bem: em produções ambientadas em contexto de guerra, os Estados Unidos cumprem o papel de mocinhos e o país inimigo, o de bandido. No caso de Interlúdio, em que a Segunda Guerra ainda estava fresca na memória da população, o inimigo é representado pela Alemanha. O Brasil, por sua vez, está presente apenas como cenário de fundo – literalmente, uma vez que a produção não foi filmada aqui. O país tropical serve de apoio para reforçar a ideia de empoderamento dos Estados Unidos. Apesar da pouca participação do Brasil, o enredo é verossímil em relação aos fatos históricos: o urânio, citado como mercadoria encontrada nas Montanhas Aimoré, era de fato um produto utilizado em armas nucleares.

Para cinéfilos, é fácil perceber o quanto o cinema moderno se inspira nas técnicas usadas por Hitchcock. Enquadramentos, movimentos de câmera e cenários são comumente reproduzidos, inclusive em produções de renome. É o caso de O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, Jonathan Demme, 1991), em que a cena de fuga do assassino Hannibal Lecter possui um plano muito parecido com o de Interlúdio, quando a chave da adega está na mão de Alicia. O enquadramento final de O Poderoso Chefão (The Godfather, Francis Ford Coppola, 1972) também parece análogo à última cena da obra de Hitchcock.

Talvez a característica que chame mais atenção no filme seja a forma como Hitchcock construiu a imagem feminina. Mais do que bela, Alicia é uma mulher de personalidade forte, totalmente fora dos padrões de comportamento impostos na época: não é casada, está sempre na companhia de homens e bebidas alcoólicas. Como a chave que abre a adega da mansão, Alicia traz uma marca: UNICA. Não seria exagero dizer que o comportamento da personagem lembra o da atriz que a encarnou. Ingrid Bergman foi casada três vezes e, entre divórcios, foi acusada de adultério, o que a afastou das filmagens nos Estados Unidos por anos.

Trailer de documentário sobre Ingrid Bergman. [youtube=https://www.youtube.com/watch?v=LZCIrkKx7yM]

Embora, em produções posteriores, Hitchcock tenha criado um padrão de representação da figura feminina como fragilizada e vitimizada, o diretor mostrou-se à frente de seu tempo ao retratar a espiã. É possível perceber, por movimentos de câmera, que a perspectiva dominante da história é de Alicia. Quando ela está deitada, a câmera mostra a visão que ela tem do ambiente. O mesmo ocorre quando é envenenada: a tontura que ela sente é reproduzida por movimentos da câmera. Arrisco dizer que seria a protagonista mais empoderada que já estrelou um filme do mestre do suspense. Alicia Huberman, como bem define o título original do longa, é notória.

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