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Green Book: O Guia (2018)

É difícil acreditar, mas diretores de comédia de vez em quando se metem a fazer filmes mais sérios. E quando acertam, podem virar alguns dos melhores comentaristas da cultura capitalista ocidental, como o Adam McKay em A Grande Aposta. A surpresa da vez é a mudança de Peter Farrely (um dos irmãos que criou Quem Vai Ficar com Mary) para este drama sobre racismo.

Ele adapta a história real de Tony Lip (Tony Bocudo na tradução nacional, vivido por Viggo Mortensen), um ítalo-americano criado e crescido no Bronx que é contratado para ser motorista da turnê musical do doutor Don Shirley (Mahershala Ali) pelo sul dos Estados Unidos em 1963. Mas o contratado é um racista grosseiro, enganador e comilão, enquanto o contratante é um negro com dois doutorados.

O clichê da dupla de personagens que geram humor pelo contraste na forma como agem e crescem individualmente graças ao que aprendem um com o outro serve de ferramenta para falar da história de racismo no país e refletir sobre a situação de pessoas que não se encaixam nos estereótipos em que nasceram.

Doutor Shirley e Tony precisam lidar pessoalmente com os problemas do país.

É onde Farrely, junto com o filho do Tony real, Nick Vallelonga e o Brian Currie, acertam no roteiro. A estrutura de dupla improvável em uma road trip já é batida, mas as origens dos personagens são originais. Uma vez que Bocudo é o típico descendente de italianos enganadores que se dão bem na máfia novaiorquina, ele não quer se envolver com o crime.

Ao mesmo tempo, Shirley é um pianista negro intelectual da alta sociedade que não gosta do estereótipo de tocador de jazz com copo de uísque no piano. Por isso, não se adequa entre os negros, nem entre os brancos que gostam da música que ele compõe e apresenta. E o contraste entre a grosseria e simplicidade de Tony com a delicadeza e sutileza do doutor forçam os dois a reverem os modos como veem o mundo e a sociedade. O que remove qualquer surpresa que o roteiro pode trazer.

No entanto, o trio de roteiristas escolhe dar força para os momentos. Desde as explicações de quem é Tony por meio de pequenas ações. No começo do filme, ele engana um grupo de mafiosos para ganhar favores, o que demonstra a capacidade de dar pequenos golpes. Pouco depois, ele joga fora dois copos em que homens negros beberam, o que revela o racismo. Tudo sem que ninguém precise dizer como ele é. O espectador compreende pelo que vê.

Doutor Don Shirley se apresenta com os parceiros musicais.

Na direção, porém, Farrely nunca foi um grande realizador. Mesmo nas melhores comédias dele, as técnicas cinematográficas servem unicamente em piadas rasteiras. E aqui, mais uma vez, ele não se mostra expressivo. Dirige apenas corretamente, o que não é ruim, mas tampouco engrandece o que poderia ser uma obra maior.

O que a experiência dele ajuda a criar é um ritmo mais fluído para a jornada da dupla. O humor é um recurso constante para as cenas de interação entre os personagens e ainda tira uma interpretação surpreendente de Mortensen. O ator sempre é capaz de dar vulnerabilidade até para os personagens mais extraordinários, e aqui dá um brilho humano a mais para a humildade do personagem quase analfabeto.

Ali, por outro lado, dá para Shirley o estoicismo e a nobreza que o personagem carrega nos códigos morais pessoais. No entanto, não esconde a fragilidade quando as idiossincrasias da alta sociedade são confrontadas com as sabedorias populares de Tony. A cena em que ele experimenta frango empanado pela primeira vez é de chorar de rir.

Tony se despede da esposa antes da viagem. Preconceitos do personagem não destroem a humanidade dele.

A verdade é que Green Book é um drama formulaico da temporada de premiações. Mas com a diferença de ter o ritmo de um realizador cômico, o que muda a fluidez e acrescenta leveza a uma história de momentos pesados. Até a pior situação de preconceito da trama, em uma delegacia próximo do terceiro ato, é fechada com tom de humor. O que torna a seriedade que segue mais crível e chocante.

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