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Elle (2016)

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Há quem diga que o trabalho do crítico é julgar se um filme é bom ou ruim, como se fosse possível determinar uma verdade absoluta sobre valor de obras de arte para tudo e todos. O fato é que o analisador não passa de um espectador, com mais embasamento para capturar características de produções. E, como todo mundo que se depara com um projeto artístico, ele também perde coisas. Justamente por isso, é tão difícil entender este Elle.

Ao acompanhar as reações da protagonista, Michèle (Isabelle Huppert), a um estupro, é muito fácil ficar confuso. Ela não demonstra trauma, raiva ou sequer tristeza, apenas lida com a situação como se alguém tivesse dado uma encostada e amassado o carro dela na rua. O estranhamento, no entanto, se distancia à medida em que se percebe todos os outros aspectos da vida dela.

De certa forma, todos os relacionamentos da vida de Michèle envolvem algum tipo de abuso. O pai, que não vê desde criança, quando ele foi preso por cometer uma chacina, a marcou para a sociedade como uma psicopata. O ex-marido bateu nela uma vez, o suficiente para que o casamento se tornasse um divórcio. O filho era traficante de drogas e tenta se redimir com a esposa que o maltrata. As conversas com a mãe são feitas de trocas de ofensas. E o estupro, obviamente, terá um reflexo em todos esses conflitos rotineiros.

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Busca por segurança pessoal.

Mas o roteiro não se resume apenas a isso, porque, uma vez que se compreende a verdadeira natureza de Michèle, reviravoltas começam a explorar o que acontece quando alguém como ela é capaz de manter algum tipo de relação com o estuprador. O que é de uma complexidade enorme de se compreender, uma vez que o roteiro nunca explica com todas as palavras a que se propõe.

Certamente não é sobre feminismo ou, como pode-se ler por aí, pós-feminismo. Apesar de ser sobre sexualidade, empoderamento sexual e a posição social de uma mulher rica, autossuficiente e bem sucedida, o tema do filme não é este. A questão aqui está mais relacionada com conceitos de personalidade que com gêneros e sexos.

Exatamente por isso, trata-se de uma obra que não esconde os momentos pesados. Entre quatro ou cinco cenas com sexo e violência (difícil determinar se todas são de estupro, por assim dizer), existe uma evolução na forma como a câmera se posiciona. A primeira é feita de forma distante e se aproxima cada vez mais, porque passa a existir uma intimidade entre Michèle e o agressor. E se isso parece bizarro ou até inaceitável para alguém, é melhor ficar longe do filme como um todo, porque ele é inteiramente embasado nessa proposta: explorar o cotidiano de uma pessoa com relações minimamente bizarras. O estupro é apenas uma delas.

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A relação com o vizinho casado é uma das coisas mais bizarras de Elle.

O que exige um elogio à interpretação de Isabelle Huppert. O desdém dela ao valor normalmente atribuído ao estupro não é desprovido de medo ou raiva, mas os revela de forma diferente. Não é à toa que se trata de uma grande atriz, de carreira extensa e reconhecimento internacional.

Verhoeven é habilidoso em termos técnicos. Sabe quais enquadramentos usar para contar a história bem. Não tenta ser inovador, mas filma bem. A violência é bem retratada e é possível compreender o tempo inteiro o que acontece, como e em que posições dentro do espaço. Ele escolhe usar uma câmera tremida, que coloca o espectador dentro da cena, como se fosse um voyeur que observa de longe em certas partes, ou que se encontra entre os personagens em outras.

Elle é um daqueles filmes que causa uma insegurança, pois não é possível ter certeza de que se pegou todos os detalhes do que pretende discutir. Ao mesmo tempo, é poderoso ao tratar de um tema tabu, associado normalmente a questionamentos diferentes. Nada é certo aqui e, justamente por isso, é tão envolvente. Ele prende e nunca fica chato.

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