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Dois Papas (The Two Popes – 2019)

Errata: Ao contrário de como estava no texto anteriormente, o papa interpretado por Anthony Hopkins é o Bento XVI.

É curioso traçar um paralelo entre o que a Netflix tem feito nas temporadas de premiações e o que os Weinstein faziam nos anos de prêmios incontáveis dos filmes deles. Desde 2018, com o mais discutido que assistido Roma, eles perceberam que conseguem uma divulgação à parte para produções lançadas na rede se elas concorrerem a prêmios. Neste ano, o avanço na linha é triplo, com O IrlandêsUma História de Casamento e este Dois Papas. Os três figuram fácil em várias listas de melhores do ano.

Aqui, a trama acompanha dois dias de diálogos entre o papa Bento XVI (Anthony Hopkins) e o cardeal Jorge Bergoglio (Jonathan Price) em 2012, um ano antes do primeiro abdicar do cargo de líder da igreja católica e o outro se tornar o atual papa Francisco. O primeiro quer debater a possibilidade de sair do trono, enquanto o segundo busca a aposentadoria para voltar a ser um padre.

O que poderia ser apenas uma sucessão de falas sobre fé e espiritualidade vira uma oportunidade para que o diretor brasileiro Fernando Meirelles e o roteirista Anthony McCarten discutam as polaridades políticas do mundo atual, e os rumos possíveis. Basta lembrar que o papa Bento XVI era constantemente criticado pelo conservadorismo e até ser chamado de nazista, e que Francisco ainda é criticado por fieis por seguir linhas mais abertas para novas visões e comportamentos através do mundo.

Jonathan Price assume o protagonismo do filme como Bergoglio.

McCarten dá tempo para que a conversa dos dois se alongue entre momentos cômicos. Os dois são e eram idosos, têm origens em culturas diferentes (Bento XVI é alemão e Francisco é argentino), e possuem comportamentos distintos. O contraste dita o tom e o ritmo. Enquanto Bergoglio busca a humildade constantemente, Bento XVI quer salvar o espírito humano por meio dos dogmas de uma religião milenar. O que também significa que é uma religião antiga.

Assim, o riso é fácil quando Bergoglio se recusa a usar vestimentas tradicionais por preguiça de como o arranjo demanda tempo e energia. Ou quando ele descobre que terá que comer uma receita alemã com poucos itens porque o líder segue uma tradição diária. Para acrescentar a esse humor, tanto Price quanto Hopkins atuam lentamente, para dar a noção dos homens velhos e sem pressa que interpretam. Daí momentos hilários como as cenas em que Bento XVI finge não ter ouvido o pedido do cardeal para assinar a renúncia dele.

Isso com ritmo semelhante ao de videoclipes, como a ótima cena de eleição do famigerado conclave papal ao ritmo de Dancing Queen, da banda Abba. Com essa condução rápida e divertida, Meirelles aos poucos faz com que os propósitos da produção se revelem. Existe um motivo para que Bergoglio se recuse a assumir cada tradição e regra da igreja à qual é tão devoto. Ele está escondido no passado dele em uma Argentina tomada por uma das mais duras ditaduras militares da América Latina.

Nem toda a rigidez e a severidade de Bento XVI o fazem ser permissivo a um sistema autoritário.

É onde entra uma das grande belezas do filme. Não há visão política democrática ou religiosa que possa aceitar o que ocorreu na Argentina. Mesmo Bento XVI, que condena os meios de Bergoglio, consegue compreender que as coisas que ele viveu eram deturpações morais. É quando os dois protagonistas entram no diálogo final do filme, e os valores de ambos são julgados. O papa por pecados que permitiu ocorrer dentro da instituição católica, e Bergoglio por pessoas que não salvou na juventude.

Meirelles não se acanha de inventar na montagem. Apesar de a produção ser digital, com imagens nítidas e precisas no foco, usa película com manchas e mudança de proporção de tela para quando volta à fase em que Bergoglio ainda se decidia entre se casar com um amor, ou seguir o sacerdócio. Assim que assume a ligação com Deus, a tela abre, como se a verdade tivesse descendido sobre o personagem.

Tudo, é claro, não seria possível sem dois atores veteranos e eficientes como Hopkins e Price. Além da vagarosidade de ambos, Bento XVI desvia o olhar com frequência de conversas e situações para esconder as maquinações que a mente inteligente consegue fazer. Enquanto Bergoglio sorri com gentileza para os erros dos outros porque consegue ver na culpa alheia o mesmo peso na consciência que carrega desde a juventude.

Por mais que se trate dos dois maiores representantes vivos da maior religião do mundo, Dois Papas é sobre dois homens e as relações deles com o poder. E é por isso que é tão bom. Se buscasse alguma forma de iluminação ou figura de linguagem que representasse o divino de alguma forma, se perderia do que realmente importa. Talvez derrape em alguns maniqueísmos em relação aos dois, mas não é nada que comprometa uma sessão divertida e enriquecedora.

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