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Noé

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Antes de Darren Aronofsky terminar a pós-produção de Noé, a Paramount – estúdio por trás do filme – fez algumas versões mais voltadas para o público religioso e exibiu esses cortes para grupos das religiões que tem Noé em sua história. Todos eles detestaram o filme. Ao saber sobre o assunto, Aronofsky demonstrou sua insatisfação e declarou: “Não fiz o filme para eles.”

Mas o Noé do título ainda é aquele da Bíblia, que recebeu a missão de garantir a continuidade das espécies após uma destruição do mundo por um dilúvio gigantesco. Realmente, a inspiração vem do livro guia de diversas religiões modernas, mas a ideia aqui é bem diferente.

Aronofsky não fez um filme bíblico ou religioso. Ele resolveu fazer uma fantasia. Pura e simplesmente, uma fantasia inspirada na mitologia católica. Nesse sentido, é muito parecido com Fúria de Titãs ou Thor. A diferença é que a fantasia é inspirada em uma mitologia que ainda é uma religião popular. Ou seja, Noé é uma adaptação que utiliza o material original para construir um universo fantástico que não é necessariamente o nosso.

Portanto, é preciso deixar claro que o público-alvo de Noé não são pessoas religiosas. Ao invés de se tornar panfletário ou moralista como a maioria dos filmes bíblicos, o filme usa o contexto de fantasia para fazer reflexões sobre questões humanas de nosso mundo.

O diretor usa de sua estilização visual e de montagem para contar a história de um mundo tomado por seres criados por um “criador”. Adão e Eva foram os dois primeiros humanos. Tiveram três filhos, Caim, Abel e Set. Caim matou Abel e se afastou da família, formando uma civilização de sua linhagem. Enquanto isso, Set formou uma linhagem de humanos mais próximos do tal criador. Os descendentes de Caim se tornaram tão deturpados e cruéis que o criador resolve limpar a terra da maldade deles e dá a Noé a missão de sobreviver a isso.

É preciso lembrar que estamos falando de um filme do diretor de Réquiem para um Sonho. Para mostrar a maldade dos humanos, Aronofsky não se censura. As imagens dos homens da linhagem de Caim são fortes e perturbam com facilidade. Mas é o necessário para representar o nível de maldade para fazer com que um deus queira limpar a sua criação dos homens.

Aronofsky sabe criar contraste entre enquadramentos e imagens representando o que os personagens fazem ou acreditam. Sobrepõe a maldade humana com a imagem repetida de Caim matando o irmão. Coloca Noé com o rosto envolto em sombras a partir do momento em que ele começa a perceber o nível do sacrifício necessário para cumprir as vontades de seu deus. Quando um dos membros da família do protagonista começa a se deixar levar por tentações, ele está ligado de alguma forma a cobras nos enquadramentos. A cor verde representa a vida, enquanto o preto representa os males do contato humano. Pouco importa a bondade dos protagonistas, toda a terra com a qual interferem apresenta cores tão escuras que tendem para o negro total.

Para dar recheio a uma história curta, Aronofsky cria dramas humanos para todos os participantes da jornada de Noé. Incluindo os humanos que sabem que estão excluídos da arca. É mais que fácil compreender um grupo de pessoas não querer morrer. O representante maior deles é um homem chamado Tubalcain. Ele sabe da existência do criador e se ressente de ser o descendente de uma linhagem de exclusão. O rancor é tanto que ele se torna o motivo para a maldade da humanidade como um todo.

Tubalcain com Noé.russell-crowe-and-ray-winstone-in-noah-2014-movie-image

Um grupo de personagens são os anjos caídos. Eles lidam com o fardo de estarem sofrendo um castigo constante do criador. Após Adão e Eva serem expulsos do paraíso, os anjos se apiedaram da humanidade e no esforço de ajudá-los acabaram ficando presos a formas de rocha na Terra. Eles sentem remorso da revolta contra o criador e buscam continuar servindo a ele.

Na família de Noé, o filme foca em uma filha adotiva chamada Ila que não existe na Bíblia. Ela se envolve romanticamente com o filho mais velho de Noé, mas não pode dar uma família para ele porque teve seu útero ferido quando era criança. Ela sofre com o fardo de talvez ser a última mulher viva na Terra e ainda assim não ser capaz de ter filhos.

Seus irmãos de criação, Sem, Cam e Jafé são obrigados a aceitar um futuro no qual não terão como constituir família, mesmo que o mais velho, Sem, possua uma companheira. Cam, o do meio, está na adolescência e começa a questionar o futuro planejado pelo criador por conta dessas coisas. Enquanto isso, a mãe segue o marido através de qualquer escolha que ele faça e consegue aceitar até mesmo os sacrifícios mais difíceis do esposo.

A família de Noé. Dramas indivíduais.Noah-2022-HD-screencaps

Mas o foco do filme é a obsessão de Noé. O personagem está tão centrado em cumprir a missão dada pelo criador que começa a se deixar levar pela crueldade que terá que realizar. Todos os elementos vão construir para diversos questionamentos relacionados a essa obediência do protagonista. Para isso, o filme não vai exatamente se chocar contra conceitos religiosos, mas vai seguir um caminho muito mais sombrio e tortuoso para chegar a esses questionamentos. O que leva a um clímax tenso e repleto de suspense e situações chocantes.

Parte da arca foi construída de verdade em um set real. A construção é tão imensa que certos takes dos atores interagindo dentro dela realmente impressionam pela escala. Esse é o nível de detalhamento de Aronofsky na construção daquele mundo. Até nas formas como o criador se manifesta existe uma preocupação em detalhes cuidadosos, como escolha de imagens com significados diversos.

O problema é quando os efeitos especiais tomam conta. Eles nunca tiram o espectador do universo, mas são visivelmente falsos. Principalmente quando se trata dos animais reunidos na embarcação. Porém, nas animações dos anjos caídos, os movimentos tem algumas quebras que lembram muito stop-motion. É computação gráfica, mas Aronofsky parece ter querido fazer uma homenagem à técnica e o resultado no visual é muito interessante e condizente com a situação daqueles personagens.

O elenco é todo muito bom. Russell Crowe mostra uma faceta diferente de suas interpretações ao criar um homem devoto e culpado. Jennifer Connely é muito poderosa nos momentos fortes como a mulher de Noé. Ray Winstone está eficiente como um vilão rancoroso e ameaçador. Anthony Hopkins não faz nada de novo, mas ainda rouba todas as cenas das quais faz parte com seu Matusalém. Surpreendentemente, o Nick Nolte é muito bom ao dar voz para um dos anjos trágicos que auxiliam Noé.

Mas as duas grandes interpretações são, ironicamente, da Emma Watson e do Logan Lerman (casal principal de As Vantagens de Ser Invisível). Ela vai pouco a pouco mostrando um lado novo de Ila. São momentos humanos muito mais adultos e complexos do que qualquer coisa que ela interpretou até o momento e já pode ser marcado como a melhor atuação da atriz até agora. Ele faz Cam, o irmão que é obrigado a aceitar uma vida sem esposas. A forma como interpreta as dúvidas morais e os questionamentos sobre o pai são tocantes.

O ritmo é um pouco lento, principalmente do começo até o momento em que o dilúvio acontece. Só então é que a narrativa mostra a que veio. Todas as partes anteriores são importantes para chegar a isso, mas ainda é um pouco extenso. Mesmo com Aronofsky tentando passar por isso o mais rápido possível. Ainda assim, é uma pequena barriga que não incomoda muito em um filme muito bem fechado no que se propõe a ser.

Noé é uma obra típica do Darren Aronofsky. A complexidade com que trata de diversos tópicos se mantém coerente com o resto de sua carreira. É um filme sombrio e tenso sobre os limites entre o que os humanos têm de bom e de mau. Acima de tudo, é sobre o que nos faz extrapolar esses limites, seja por amor ou por ódio.

 

GERÔNIMOOOOOOOO…

3 comentários em “Noé

  1. Vi muita gente falando que o Noé é lento, mas cara, não achei lento não. Pelo contrário, por momentos até achei rápido as “transições” do filme, mas nada que comprometa. Apesar de ser sensacional, achei um pouco manjada aquelas cenas rápidas que são totalmente tiradas do “Réquiem Para um Sonho”. Acho que tem que usa-las com moderação hahaha. Outro ponto que sempre gostei do Aronofsky, é o limite que ele tira dos atores nas atuações. Ray Winstone pra mim foi sensacional, assim como o Crowe e, principalmente as duas mulheres (Conelly e Watson) que deram um show de interpretação. Gostei muito do filme, mas ainda assim, achei esse o mais “hollywoodiano” do diretor, mas um hollywoodiano bem pesado, que ainda consegue fugir das tramas convencionais.

    1. Só por levantar discussão, já é melhor que quase tudo que Hollywood faz. Mas eu concordo, o filme é rápido. Só achei cansativo, até o dilúvio, parece que não tem muito objetivo.

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